Da Não Incidência do ISS sobre o Licenciamento ou Cessão de Direito de Uso de Softwares

Artigo do Dr. Paulo Attie publicado nas revistas eletrônicas “Tributário.net” no dia 29/09/06, “Trinolex” no dia 02/10/06, “Jus Navigandi” no dia 04/10/06 e “FiscoSoft” no dia 25/10/06

A Lei Complementar 116, de 31/07/03 trouxe diversas alterações, de âmbito nacional, para a instituição e arrecadação, por parte dos Municípios, do Imposto sobre Serviços de qualquer natureza – ISS, dentre elas, a previsão de cobrança deste tributo em relação ao “licenciamento ou cessão de direito de uso de programa de computação”, constante do item 1.05, da sua lista anexa.

O ISS tem seu arquétipo constitucional traçado pelo artigo 156, III da Constituição Federal, segundo o qual compete aos Municípios instituir o referido imposto sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar. O critério material do Imposto sobre serviços consubstancia-se naprestação de serviços, consoante já dispunha o artigo 8º do Decreto Lei nº 406/68[1] e como ainda estabelece o artigo 1º da Lei Complementar nº 116/03[2].

Para elucidar este critério material, prestação de serviços, como não poderia deixar de ser, o Direito Tributário se utiliza dos conceitos do direito das obrigações, em especial, da distinção havida entre as obrigações de dar e de fazer.

O Código Civil Brasileiro, inspirado na técnica romana classifica as obrigações quanto ao seu objeto em três espécies: obrigações de dar, de fazer e de não fazer. Todas as obrigações que venham a se constituir no mundo jurídico compreenderão sempre alguma dessas condutas.

A partir deste critério secular, a prestação de serviços é considerada como sendo uma espécie de obrigação de fazer, tendo em vista a presença de esforço humano – trabalho, para a elaboração de algum objeto que desperte interesse jurídico a terceiro.

Prestar um serviço, na autorizada lição de Aires Fernandino Barreto, consiste na “prestação de esforço humano a terceiros, com conteúdo econômico em caráter negocial, sob regime de direito privado, tendente a obtenção de um bem material ou imaterial”.[3]

Consoante assevera José Eduardo Soares de Melo “O cerne da materialidade da hipótese de incidência do imposto em comento não se circunscreve a “serviço”, mas a uma “prestação de serviço” compreendendo um negócio (jurídico) pertinente a uma obrigação de “fazer”, de conformidade com os postulados e diretrizes do direito privado.”[4]

Neste sentido, o critério material do Imposto sobre serviço jamais poderia contemplar qualquer espécie de obrigação de dar, ou mesmo de não fazer, uma vez que é justamente um fazer, que se traduz na prestação de serviços albergada pela hipótese tributária.

Neste diapasão, consoante mencionado acima, com o advento da Lei Complementar nº 116/03, o legislador tentou abarcar a atividade de “licenciamento ou cessão de direito de uso de programa de computação” como hipótese de incidência do ISS.

Antes de mais nada, programa de computador, a teor do disposto no artigo 1º, da Lei nº 9.609/98 “é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados.”

A Lei nº 9.609/98 que regula a propriedade intelectual dos programas de computador aduz, em seu artigo 2º[5], que o seu regime de proteção intelectual é o mesmo conferido às obras literárias. Por sua vez, as obras literárias, a teor do artigo 3º[6]da Lei nº 9.610/98, são consideradas, para fins legais, bens móveis.

Assim, tais bens são passíveis de terem sua titularidade transferida a terceiros, o que ocorre mediante os “contratos de cessão de direitos de programa de computador”, pelo qual se transferem, total, ou parcialmente, os direitos autorais do titular da obra a outrem.

Noutro giro, os programas de computador também podem ter o seu uso apenas, disponibilizado a terceiros, sem que, contudo, sua propriedade seja objeto de transferência.

No Brasil, como em grande parte dos países, a contratação do uso dos programas de computador se dá mediante o “contrato de licença de uso” (licenciamento), formatação esta que foi, inclusive, positivada pelo artigo 9º[7] da Lei nº 9.609/98. A Lei Complementar nº 116/03 também se utilizou da expressão “cessão de direito de uso de programa de computação”, no que mereceu censura de parte da Doutrina[8].

Pois bem, consoante asseveram Wilson Furtado e Cristine Schreiter Furtado[9]“através do contrato de licença de uso, o proprietário e detentor dos direitos autorais do software concede a outrem licença permanente, não exclusiva e não transferível de cópia do programa de computador em pauta, para uso próprio em seu equipamento de computação. Ressalte-se que essa licença é de uma cópia do software e apenas para o uso do licenciado, ou seja, a licença de uso conferida pelo proprietário do software não transfere ao adquirente em hipótese alguma a licença ou o direito relativo à propriedade industrial e intelectual (direito autoral) do software.”

Como se percebe, a licença de uso ou cessão de direito de uso de programa de computador não se consubstancia numa obrigação de fazer, mas sim numa obrigação de dar, na modalidade disponibilizar temporariamente, mediante contraprestação ou não (onerosa ou gratuita).

A cessão do direito de uso ou o licenciamento implica na disponibilização do software, para que um terceiro dele se utilize, de forma temporária, conservando-se, desta forma, a sua propriedade com o titular original.

Antes de prosseguir, porém, deve-se fazer necessária distinção entre a cessão de uso de programa de computador acompanhada de consultoria, na qual realizar-se-ão os devidos ajustes no programa, o que é denominado customização, para que sirva melhor ao licenciado; daquela licença de uso pura, totalmente desacompanhada de qualquer obrigação de fazer.

Com efeito, no primeiro caso, além da licença de uso, o detentor do direito autoral ou mesmo terceiro por ele autorizado, presta um serviço de consultoria, totalmente autônomo e independente do licenciamento.

Deste modo, o prestador do serviço de customização deverá recolher o imposto devido sobre tal serviço. No segundo caso, não há prestação de serviços, mas sim, mera permissão contratada onerosamente ou não, quanto ao direito de uso da obra por terceiro e sua regulamentação (direitos e obrigações das partes).

Também para ilustrar nosso raciocínio, na elaboração de um programa de computador para determinada pessoa, ou seja, no chamado “contrato de desenvolvimento específico de software”, é indiscutível a ocorrência de uma obrigação de fazer, pelo que tal atividade encontra-se perfeitamente sujeita à incidência do ISS, consoante item 1.04 da Lista Anexa à Lei Complementar nº 116/03: “Elaboração de programas de computador, inclusive de jogos eletrônicos.”

Uma vez concebido e elaborado o programa de computador, seu titular poderá licenciar seu uso a terceiros, atividade esta que claramente não envolve uma obrigação de fazer, de tal forma que não poderá sofrer a incidência do ISS, imposto que tem no critério material de sua incidência a prestação de serviços.

A finalidade do direito tributário, como se sabe, é disciplinar as normas de instituição e arrecadação dos tributos, receitas primárias do Estado, essenciais à sua manutenção e desenvolvimento.

Assim, o Estado, mediante o “pacto social”, cria os tributos que incidirão sobre fatos jurídicos. Desta feita, o legislador constituinte escolheu alguns fatos jurídicos, que, na linguagem de Pontes de Miranda, poderão ser “coloridos” pelas hipóteses de incidência dos tributos.

Pois bem, toda esta explanação ultimou demonstrar, em síntese, que o Direito Tributário não cria os fatos sobre os quais os tributos incidirão. Muito ao contrário, deve se utilizar dos fatos jurídicos tal como previamente qualificados e conceituados pelo Direito então vigente.

Este é um axioma do mundo jurídico. Se quando estamos diante da liberdade, como bem da vida, não pode o Direito Penal valer-se de interpretação extensiva (seja ela econômica, social, etc) para restringí-lo, no Direito Tributário também não se permite que o Estado possa alterar os conceitos dos fatos jurídicos para pretender subtrair (de forma ilegítima) a propriedade dos administrados/contribuintes.

Este enunciado inclusive, foi colocado de forma expressa no Código Tributário Nacional – CTN, que em seu artigo 110 estatui: ”a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”

Todavia, ainda que tal enunciado não estivesse estampado no artigo 110 do CTN, sua eficácia não seria, em nada, diminuída, como lembra Paulo de Barros Carvalho[10]: “O imperativo não vem, diretamente, do preceito exarado no art. 110. É uma imposição lógica da hierarquia de nosso sistema jurídico. O empenho do constituinte cairia em solo estéril se a lei infraconstitucional pudesse ampliar, modificar ou restringir os conceitos utilizados naqueles diplomas para desenhar as faixas de competências oferecidas às pessoas políticas. A rígida discriminação de campos materiais para o exercício da atividade legislativa dos entes tributantes, tendo estatura constitucional, por si só já determina essa inalterabilidade.”

Desta feita, não pode o Direito Tributário, com a finalidade de majorar o alcance das hipóteses de incidência constitucionalmente previstas, pretender alterar os conceitos/conteúdos dos fatos jurídicos, tais como engendrados pelos seus devidos ramos do direito, para, a partir daí, tributá-los.

Tratando de situação jurídica bastante semelhante, e portanto totalmente aplicável ao presente raciocínio, o E. Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário nº 116.121, decidiu ser inconstitucional a incidência do ISS na atividade de “locação de bens móveis”, atividade esta não qual, como na ora tratada, não há que se falar em obrigação de fazer, mas sim de dar, na modalidade disponibilizar temporariamente.

Acertadamente, naquele julgamento prevaleceu o entendimento segundo o qual a norma constitucional que outorga competência para os Municípios instituírem o imposto sobre serviços vincula a sua cobrança às obrigações de fazer, não podendo alcançar as obrigações de dar, conforme denota-se da ementa a seguir:

“Tributo – Figurino Constitucional. A supremacia da carta Federal é conducente a glosar-se a cobrança do tributo discrepante daqueles nela previstos.

Imposto sobre Serviços – Contrato de Locação. A terminologia constitucional do Imposto sobre Serviços revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância inafastável – artigo 110 do Código Tributário Nacional.”

Vale lembrar, que o julgamento acima representou um marco para a  ciência do Direito Tributário, porquanto aquele mesmo Tribunal, durante anos admitiu a ampliação de conceitos jurídicos, para fins de enquadrá-los nas hipóteses de incidência tributárias, em especial, no que tange especificamente ao ISS sobre as locações de bens móveis[11].
O Relator, Ministro Marco Aurélio, citando a doutrina de Gilberto Ulhôa Canto defendeu em seu voto a “irrelevância do aspecto econômico quando contrário ao modelo constitucional do tributo, secundado pela definição dos institutos envolvidos.”

Desta feita, atualmente, para o orgulho dos estudiosos do Direito Tributário, o entendimento que prevalece no âmbito do Supremo Tribunal Federal, mais alta corte da República, é pela inaplicabilidade da interpretação econômica das normas tributárias e sim, pelo devido apego aos conceitos tipos. No que nos interessa mais de perto, a prestação de serviço, só pode ser uma obrigação de fazer e jamais, obrigação de dar.

Assim, verifica-se, claramente, a total impossibilidade do Imposto sobre Serviços incidir sobre os contratos de licença de uso ou cessão de direito de uso de programas de computação, tal como pretendido pela Lei Complementar nº 116/03, no item 1.05 da sua lista anexa.

Ante os breves argumentos jurídicos ora expostos, a nosso ver, aquelas empresas que auferem receita advinda da licença de uso ou cessão de direito de uso de programas de computador poderão obter o reconhecimento da não incidência do ISS sobre tais valores, para os períodos futuros, bem como reclamar a restituição dos valores já recolhidos, mediante a propositura da adequada ação judicial.

_______________________________________
[1] “Art 8º O impôsto, de competência dos Municípios, sôbre serviços de qualquer natureza, tem como fato gerador a prestação, por emprêsa ou profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço constante da lista anexa.
§ 1º Os serviços incluídos na lista ficam sujeitos apenas ao impôsto previsto neste artigo, ainda que sua prestação envolva fornecimento de mercadoria.
§ 2º Os serviços não especificados na lista e cuja prestação envolva o fornecimento de mercadorias ficam sujeitos ao impôsto de circulação de mercadorias.
§ 2º O fornecimento de mercadoria com prestação de serviços não especificados na lista fica sujeito ao impôsto sôbre circulação de mercadorias.”
[2] “Art. 1o O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador.”
“Art. 1 O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador.”“Art. 1 O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador.”“Art. 1 O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador.”“Art. 1 O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador.”“Art. 1 O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador.”“Art. 1 O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador.”
[3] In Revista de Direito Tributário 15/200- Aires Barreto.
[4] In, “ISS – Aspectos Teóricos e Práticos”, 3ª Edição, Ed. Dialética, p. 33.
[5] Art. 2º O regime de proteção à propriedade intelectual de programa de computador é o conferido às obras literárias pela legislação de direitos autorais e conexos vigentes no País, observado o disposto nesta Lei.
[6] Art. 3º Os direitos autorais reputam-se, para os efeitos legais, bens móveis.
[7] Art. 9º O uso de programa de computador no País será objeto de contrato de licença
[8] Emir Iscandor Amad, em sua obra Contratos de Software “Shrinkwrap Licenses” e “Clickwrap Licences”, Editora Renovar, pg78/79 pontua: “O contrato de cessão de direitos de programas de computador é o instrumento pelo qual se transferem, total ou parcialmente, os direitos patrimoniais do titular da obra a outrem. Já o contrato de licença de “software”, conforme ensina Manoel J. Pereira dos Santos, “é uma modalidade de negócio jurídico através do qual alguém, denominado Licenciante, concede a outrem, denominado Licenciado, o direito de exploração econômica e/ou utilização do programa de computador”. Note-se que é muito comum haver o uso indiscriminado do termo cessão, ora como cessão propriamente dita, ora no sentido de licença, havendo flagrante incerteza conceitual em nosso ordenamento jurídico com relação à esse termo.”
[9] In, Dos Contratos e Obrigações de Software, Iglu Editora, São Paulo, 2004, p.21.
[10] (In, Curso de Direito Tributário, Editora Saraiva, 13ª edição, pg. 104).
[11] Tal constatação pode ser feita à luz da interpretação dos históricos julgamentos concernentes à incidência do ISS nas locações de bens móveis de que ora se tratou, cuja autorização expressa estava prevista, inicialmente, no artigo 71, §1º, I, do Código Tributário Nacional, posteriormente, no item 52, da Lista de serviços anexa ao Decreto-Lei 834 e no item 79, da lista anexa à Lei Complementar 56/87.No julgamento do Recurso Extraordinário nº 112.947, relatoria da lavra do Ministro Carlos Madeira, o entendimento prevalecente foi o de que os conceitos jurídicos, no caso, trazidos pelo Código Civil, poderiam, ser “dilatados”, para que, aí sim, pudessem enquadrar-se na hipótese tributária de prestação de serviços. Felizmente, esta interpretação econômica das normas tributárias, acredita-se, fundada nas teorias de Enno Becker, Ezio Vanoni e no Brasil, por Amílcar de Araújo Falcão, levada à cabo durante anos pelos E. STF felizmente já está ultrapassada tendo em vista que retira do direito tributário uma de suas principais características, qual seja, a tratar-se de um direito de superposição.